Sobre a independência do Banco Central

O cenário político recente despertou novamente o debate sobre independência (ou autonomia) do Banco Central do Brasil (BCB). Uma diversidade de argumentos, teóricos ou ideológicos, vem sendo utilizada para defender, de um lado, um maior controle do Poder Executivo sobre as decisões do BCB, ou, de outro, um maior isolamento do órgão com respeito a oscilações políticas. Nesta carta, entregamos nossa análise sobre o papel do Banco Central na sociedade e nossos argumentos em defesa da sua independência.

Primeiramente, é preciso clarificar o que é (e o que não é) independência do Banco Central.

Independência pode ser entendida como um arranjo institucional em que estão presentes mecanismos de insulação do órgão em relação a intervenções discricionárias do governo. Dito de outra forma, a independência representa um desenho das regras do jogo de modo a deixar o BC livre de influências políticas que prejudiquem o cumprimento da sua missão como guardião da estabilidade da moeda – leia-se, inflação sob controle.

Que mecanismos garantem independência na prática? Como exemplos, podemos citar:

  • Período de tempo predefinido para o mandato do presidente e da diretoria do órgão, assim como critérios alternativos de escolha da direção (que não a nomeação direta por parte do governo), são regras que evitam a interferência do governante.
  • A autonomia orçamentária é tida como outra forma de reforçar a independência do órgão, já que o governo poderia exercer pressão sobre o órgão retendo recursos orçamentários ou obstruindo contratação de funcionários.

Antes de discutirmos os benefícios de um BC independente, é preciso quebrar alguns mitos por vezes disseminados ao publico geral a respeito deste tema.

Independência não é entregar o galinheiro a comando da raposa, como argumentam alguns veículos na mídia (veja artigo). De fato, o quadro de funcionários do BC precisa de pessoas com experiência com bancos e com o mercado financeiro, inclusive na diretoria, devido ao nível técnico exigido pelo trabalho que é desempenhado no órgão. Todavia, o desenho de instituições como o BC certamente não ignora a possibilidade de conflitos de interesse, informação privilegiada, nem a possibilidade de captura da agência pública por interesses privados, os quais representam comportamentos abusivos em prejuízo da comunidade. Para esses problemas, há dispositivos especialmente criados no design institucional, como o período de quarentena profissional dos ex-diretores, a auditoria externa e a subordinação do presidente a conselhos de administração.

Independência não significa abrir mão da determinação dos objetivos de política pela nossa democracia representativa. Até mesmo um BC com operação independente precisa respeitar a lei existente e seguir as diretrizes de política estabelecidas por instâncias superiores, como o Congresso. Para prevenir condutas que se desviem dessas diretrizes, há dispositivos como a avaliação independente e incentivos para a responsabilização (accountability). Vide, por exemplo, o sistema de accountability do Banco Central Europeu, um BC independente com o desafio de harmonizar objetivos de política de dezoito nações [1].

Mas por que a independência de uma instituição pode ser desejável?

  1. No caso de alguns órgãos, não é bom que o seu desempenho seja contaminado por preocupações de curto prazo do governo de situação. Seja porque o horizonte temporal relevante vai além dos ciclos eleitorais, seja porque o objeto da atuação do órgão é sensível politicamente (por exemplo, se trata de medidas impopulares ou medidas com benefícios somente para a geração futura).
  2. Em outros casos, o objetivo do órgão precisa de credibilidade para ser cumprido. Assim, o único modo de os agentes envolvidos acreditarem no comprometimento do órgão é se houver insulação dos humores da política. Dito de outra forma, em alguns setores a estabilidade das regras e dos procedimentos é peça central para se alcançar o objetivo almejado.

São exemplos de entidades cuja independência é desejável aquelas que lidam diretamente com a regulação dos agentes, como, por exemplo, o Poder Judiciário, as Agências Reguladoras, o CADE e a CVM. Outros exemplos são os órgãos de fiscalização da própria ação do governo, como o TCU, o Ministério Público e a Polícia Federal.

O Banco Central mistura elementos desses dois tipos de órgão. Sua missão, conforme declarada em seu estatuto, é dupla: (i) manter a estabilidade de preços e (ii) assegurar um sistema financeiro sólido e eficiente. A segunda tarefa está ligada à formulação de regras e à fiscalização da atividade bancária com o objetivo de controlar o risco sistêmico, evitar fraudes e crimes como lavagem de dinheiro. Só esta missão já justificaria a independência do banco para assegurar sua credibilidade e a segurança jurídica.

No entanto, a primeira missão é a mais sensível, especialmente no caso do Brasil. A estabilidade do poder de compra da moeda (ou seja, a inflação sob controle) tem no Banco Central o seu principal guardião, devido, principalmente, à eficácia da atuação desse órgão para influenciar a macroeconomia, por meio da política monetária.

(Para uma abordagem didática sobre como funciona a política monetária, recomendamos este artigo sobre independência do BC para não-economistas.)

O Brasil tem um histórico de coexistência com altos e persistentes níveis de inflação, um problema crônico denominado pelo historiador econômico Gustavo Franco como ‘inflacionismo’ [2]. Este fenômeno consiste na incapacidade do governo de se financiar via aumento de impostos no presente ou no futuro (via emissão de dívida), e está intimamente relacionado com a instabilidade política do Estado aliada a uma estrutura extremamente desigual de distribuição de riqueza. Sendo assim, somente através do aumento da inflação o governo consegue expandir seus gastos politicamente direcionados e, dessa forma, garantir o apoio político de grupos diversos para se sustentar no poder. O lado perverso disso é que o financiamento inflacionário do Estado funciona como um imposto regressivo, incidindo de forma mais acentuada sobre os mais pobres e piorando a estrutura distributiva.

Entretanto, com a redemocratização dos anos 1980 e a consequente emergência das demandas sociais, o controle da inflação se tornou claramente uma prioridade de política pública. Após várias tentativas fracassadas nos primeiros governos democráticos, o Plano Real conseguiu, em 1994, lançar as bases para uma inflação estabilizada. Além de prescrever uma série de ajustes macroeconômicos, como controle do déficit público e âncora cambial, o Plano tinha um pilar central: a credibilidade do governo no compromisso com a estabilidade de preços.

Essa credibilidade afeta a raiz das expectativas dos agentes da economia (produtores, consumidores, bancos), os quais, tomando suas decisões de forma descentralizada, determinam conjuntamente a evolução dos preços. Porém, o Plano não poderia depender, para sempre, da credibilidade dos indivíduos à frente da condução da política naquela época. Seus proponentes estavam cientes da inconsistência de programas de controle da inflação que dependessem da discricionariedade do governo, fato consolidado na literatura econômica [3],[4].

Por isso, o programa de controle da inflação inaugurado pelo Plano Real foi transformado, a partir de 1999, em um mecanismo de caráter institucional: o Sistema de Metas para a Inflação. Neste sistema, o BCB se compromete institucionalmente a utilizar os instrumentos à sua disposição para manter a inflação anual projetada dentro de uma meta centrada em 4,5%, com 2 pontos de tolerância para mais ou para menos (ou seja, entre 2,5 e 6,5). Além disso, para o sistema funcionar bem, é necessário que o BC opere com absoluta transparência e que seus objetivos de política sejam de amplo conhecimento do público. O resultado deste modelo é claro: os níveis de inflação foram consistentemente mais baixos desde 1994 [veja o gráfico].

Inflação anual medida pelo IGP-DI (Fonte: BCB)
Inflação anual medida pelo IGP-DI (Fonte: BCB)

O funcionamento do Sistema de Metas, porém, depende criticamente da credibilidade do Banco Central. Apesar de operar com relativa autonomia, qual seja, uma relativa liberdade para decidir os meios e instrumentos para implementar as metas e diretrizes estabelecidas pelo governo, o BCB não possui independência de fato. As dúvidas quanto à credibilidade do Banco podem ser evidenciadas pelo fato de que, nos anos recentes, rumores de que o Governo estaria pressionando o presidente do BC no sentido de ser menos rigoroso com o cumprimento da meta, por si só, contribuíram para o aumento da expectativa de inflação, que hoje beira o teto da meta (6,5%) no acumulado de 12 meses.

Somos de uma geração jovem, que pouco vivenciou o caos e a aflição causados pela inflação fora de controle, mas já ouvimos histórias, de nossos pais e mestres, sobre como era difícil o planejamento e a vida econômica naquela época. Além disso, os dados e a literatura nos ensinam sobre os efeitos perversos da inflação sobre as camadas de menor renda, bem como sobre o potencial de desenvolvimento da nossa economia.

Esses fatos nos levam a crer que a estabilidade de preços figura como senão a mais valiosa conquista econômica da nossa jovem democracia. Portanto, para preservá-la, defendemos a independência do Banco Central do Brasil.

Respeitosamente,

Alunos da Escola de Pós-Graduação em Economia da FGV

Referências

[1] Banco Central Europeu. Organização > Responsabilização. Acesso em 07/09/2014. Disponível em: https://www.ecb.europa.eu/ecb/orga/accountability/html/index.pt.html

[2] Franco, Gustavo. “Auge e Declínio do Inflacionismo no Brasil.” In: Fábio Giambiagi, André Villela, Lavinia Barros de Castro e Jennifer Hermann (orgs.) Economia Brasileira Contemporânea 1945/2004, Capítulo 10, p.258-283. Rio de Janeiro, Editora Campus, 2004.

[3] Kydland, Finn E.; Prescott, Edward C. “Rules rather than discretion: the inconsistency of optimal plans.” Journal of Political Economy Vol. 85 No. 3., p.473-492, 1977.

[4] Bernanke, Ben S. “Central Bank Independence, Transparency and Accountability.” Speech at the institute for monetary and economic studies international conference, Bank of Japan, May 25th 2010. Disponível em: http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/bernanke20100525a.htm

11 comentários sobre “Sobre a independência do Banco Central

  1. Cinco pontos…..

    1 – Se a mensagem visa esclarecer sobre os benefícios de um BCB totalmente independente (e não autônomo como é atualmente o nosso) é óbvio que a listinha que viria a seguir só elencaria os aspectos supostamente positivos desse modelo. E foi o que aconteceu;

    2 – Ciências Econômicas dizem respeito a um conjunto de teorias e ferramentas pelas quais os economistas conseguem operacionalizar Politicas Econômicas e não substituir nem elaborar Política, já que não é a ferramenta que determina os resultados, mas os resultados desejados que determinam as ferramentas a serem utilizadas de acordo com a orientação política de fundo. Isso é importante porque a mensagem desses alunos assume um caráter panfletário a favor do liberalismo econômico, o qual exige a independência dos sistemas financeiros nos países ocidentais com vistas à garantia de que os rumos sinalizados pelo capital internacional cheguem à cabo sem contratempos (voltaremos a esse ponto mais adiante);

    3 – O Brasil, historicamente (e mais recentemente com a chegada do PT ao poder) promoveu a estabilidade econômica garantindo politicamente a autonomia do Banco Central, porém sem permitir sua total independência. Isso significou em termos práticos (e que não é mencionado na mensagem dos alunos) que passássemos incólumes à grande crise internacional de 2008 sem que o nível de emprego, salários e investimentos caíssem. Essa autonomia também garantiu via programas sociais que o Brasil (pela primeira vez em sua história) conseguisse um nível interno de poupança que não deixasse o país à mercê do capital volátil especulativo internacional que se esvaiu de boa parte do mundo quando os EUA resolveram captar recursos para enfrentar sua crise. Assim como também essa autonomia garantiu o uso de nossas reservas cambiais no sentido de equilibrar a paridade Dólar-Real nas nossas transações internacionais. Ora, óbvio que isso gerou certo nível de inflação, diminuição de superávit primário e queda em nossas reservas, mas garantiu que o país continuasse crescendo até esse momento, sendo que a maioria dos países europeus tiveram quedas vertiginosas e quadros recessivos muito mais acentuados que a atual “recessão técnica” a qual nos vaticinam (e que já saímos);

    4 – Embora a independência do BCB garanta que a Política Econômica não flutue de acordo com alguma necessidade política circunstancial (como se algo assim fosse concebível), não garante que o BCB seja independente das políticas internacionais que protegem as grandes corporações e grandes sistemas financeiros, deixando-nos totalmente frágeis frente às flutuações internacionais. Ou seja, quanto mais independente o BCB for do Governo tanto mais ele perde sua autonomia diante da pressão das politicas internacionais que visam a proteção do grande capital cuja única razão de existir é acumular-se sucessivamente explorando desumanamente todos os rincões do planeta;

    5 – Por fim está clara a inevitável carga ideológica no teor dessa mensagem dos alunos de Pós-Graduação da FGV que os fazem acreditar que as políticas estabelecidas pelo capital internacional sejam mais confiáveis do que a política de um governo eleito democraticamente pelo povo cujo Banco Central tem como missão salvaguardar de instabilidades econômico-financeiras.

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  2. Na verdade, sua colocação se encaixa no que é normalmente chamado de falácia do espantalho, no sentido de que você prefere atacar o caráter subjetivo da ciência econômica como ciência social, ao invés de realmente contrapor o que foi argumentado objetivamente pelos colegas. Ademais, você associa erroneamente o relativo êxito macroeconômico do Brasil na década passada com a entidade PT, sem qualificar profundamente tal relação, de modo a fazer uma espécie de propaganda eleitoral em favor do partido governista. Dois pontos acerca disso:

    Na verdade esse êxito tem justamente ligação com a maior credibilidade da política monetária garantida por um Banco Central relativamente mais autônomo do que o atual (comparando as gestões Alexandre Tombini com a de Henrique Meirelles), bem como a maior estabilidade macroeconômica proporcionada pela manutenção do tripé metas-superávit primário-câmbio flutuante, criado durante a gestão anterior à petista, mantida durante o governo Lula e agora recentemente abandonada. O que temos agora é: leniência com a inflação acima do centro da meta, níveis de superávit primário relativamente muito menores, e gerenciamento discricionário do câmbio. Ou seja, as próprias bases que garantiram o crescimento e a estabilização da economia na década passada foram abandonadas em favor de uma política de microgerenciamento megalomaníaco da economia, que tem nos carregado para um cenário de estagflação (aliás, ainda estamos em recessão técnica).

    O segundo ponto é o seguinte: é preciso relativizar esse suposto êxito da economia brasileira na década passada. Será que realmente fomos tão bem relativamente a outros países comparáveis? Esse é o ponto do seguinte trabalho de Carrasco, Duarte e Mello (2014). Segue o link abaixo para consulta, e a conclusão resumida é que, na maior parte dos aspectos avaliados, não, o Brasil não foi tão bem como se propagandeia por aí.

    Clique para acessar o td626.pdf

    Como se não fosse suficiente, Gilberto, você ainda se vale de um ataque ad hominem, questionando a validade da argumentação dos colegas com base na suposta pecha de “carga ideológica”. Até que ponto o seu próprio comentário é destituído do que você classifica como “carga ideológica”? E em que nível o seu comentário, permeado pela sua própria “carga ideológica” invalida o argumento postulado pelos colegas acima?

    Está na hora de reconhecer a falência do atual modelo de gestão da economia brasileira, bem como denunciar a enorme desonestidade intelectual promovida pela atual campanha petista, como podemos ver na recente propaganda a respeito da proposta de autonomia do Banco Central da candidata Marina Silva. Fazem uso de inverdades conscientemente com objetivo de criar um cenário de terror no imaginário do eleitorado.

    Fernando Gomes Mattar

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  3. Boa análise. Pra vocês, jovens economistas, deve ficar a lição de como é difícil mexer em institucionalidades relevantes aos hábitos do país. A independência do BC vai ter de virar luta política de uma geração (claro, uma luta entre os formuladores de política. O espaço da verdadeira política de desenvolvimento vai cada vez mais ter de se situar no campo fiscal e no campo das opções de investimento estratégico e cada vez menos ao saber do voluntarismo do Governo. Pela razão simples, prosaica e quase banal de que voluntarismo de governo pode ser bom, inofensivo, péssimo ou tenebroso, e não convém deixar a moeda (nossa reserva virtual da riqueza real) ao sabor desse risco.

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    • Por gentileza, nos ilumine em relacao as suas relevantes opnioes sobre o Ben Bernanke. Vc ja leu alguma coisa escita por ele ou algum amigo petista falou que ele eh a face do capitalismo financeiro e vc antipatizou?

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